sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008



Título: ZAP COMIX (Conrad Editora) - Edição especial

Autores: Robert Crumb, S. Clay Wilson, Rick Griffin, Robert Williams, Manuel Spain Rodriguez, Victor Moscoso, Gilbert Shelton e Paul Mavrides (roteiro e arte).

Número de páginas: 192

Data de lançamento: Outubro de 2003


Sinopse:

Compilação que reúne diversos momentos da revista underground americana Zap Comix, importante marco da contracultura (anos 60 e 70).Positivo/Negativo: Feche esta janela aquele cujos pais nunca se importaram que passassem os dias a ler "inúteis gibis". Afortunados os admiradores dessa arte incompreendida que não penaram com esse tipo de repressão, nem tiveram seus álbuns raros rasgados por mães hepáticas.Desde que o mundo é mundo e o pequeno Nemo passeava pelos campos oníricos bidimensionais dos jornais de domingo, pais e comics não se dão bem. Nos Estados Unidos da década de 1950, então, essa desavença foi parar no divã.A "América", como se fora um mundo à parte (e de certa forma o é), passa por ciclos contínuos previsíveis, um se seguindo ao outro, de liberalismo e conservadorismo (devidamente representados em seus dois principais partidos: respectivamente, o democrata e o republicano).Nos anos 50, os conservadores dominavam. A base da sociedade estadunidense (a liberdade de expressão) e todo seu viés democrático (a expansão de uma nova cultura popular, sob a crosta da Indústria Cultural) haviam levado o país a um esplendor jamais visto. Assim, o início do século XX acompanhou a efervescência do jazz, Hollywood, Brodway, Norman Rockwell, a literatura descartável em edições vagabundas (pulp fiction) e os comic books (que são, enfim, o que nos interessa).

Com a surpreendente liberdade que caracteriza os novos meios, os quadrinhos, em seus primórdios, assimilaram rapidamente características da cultura de massa vigente, mesclando literatura (não só a pulp fiction, como os clássicos) a cinema, ciência e até os estudos psicanalíticos da época, fornecendo inúmeras inovações formais que seriam adotadas pelas outras artes (cinema principalmente).Embora fossem consideradas pelos críticos como "infantis" ou "emburrecedoras", as primeiras obras atingiam em sua maior parte o público adulto e razoavelmente esclarecido (afinal, eram publicadas em jornais). Datam dessa época áurea, obras insuperáveis, como Krazy Kat e Little Nemo in Slumberland.Consta que os soldados americanos consumiam dúzias de HQs nos frontes da Segunda Guerra. Era de tal forma patente essa forte identificação do "jeito americano de viver" com os comics, que um alto funcionário do governo soviético, a respeito do medo ianque de uma invasão comunista durante a Guerra Fria, disse: "eles podem ficar tranqüilos, não vamos tirar seus quadrinhos".Em nenhum outro país, portanto, podia ter se dado o fenômeno Zap Comix, nos idos de 1968. A liberdade total das primeiras décadas durara pouco. A América engrossou o caldo. O macarthismo invadia as ruas, criando uma paranóia perigosamente semelhante à atual. Os quadrinhos não podiam ficar de fora.Satisfazendo o desejo de nove em cada dez mães estadunidenses, os gibis foram formalmente acusados de levar a juventude à degeneração pelo "Senador Joseph McCarthy dos comics", o Dr. Fredric Wertham, em seu livro The Seduction of the Innocents (A Sedução dos Inocentes).De acordo com o autor, leitores de quadrinhos tinham maior propensão a se tornarem criminosos ou terem comportamentos socialmente inconvenientes (Wertham atribuía, por exemplo, o aumento considerável da "pederastia" nas forças armadas à leitura de Batman & Robin).

Houve uma crise imediata no setor. Os jornaleiros se recusavam a vender HQs (o lucro era ínfimo, se comparado à perseguição das associações de pais).A reação da até então bem-sucedida indústria dos comics (para evitar uma séria restrição por parte do Congresso Americano) foi a autocensura. Assim, foi criada logo em seguida o famoso Comics Code Authority, que reunia as grandes editoras da época e instituía nos gibis uma visão puritana.Adotando o pensamento de Wertham como verdade incontestável, não só acabou com o gênero horror (para a alegria dos quadrinhistas brasileiros, que o transformaram no grande filão do mercado brasileiro, fazendo ótimas HQs, nas décadas de 1960 e 70), como também pôs fim a quaisquer expressões de erotismo (daí os heróis em certo período serem "capados"), decretou a visão maniqueísta como padrão no tratamento das histórias... Enfim, arruinou o que vinha sendo feito. Nada era comercializado nas bancas sem esse selo, que era uma garantia para os pais de que seus filhos consumiam produtos inofensivos.Pra se ter uma idéia do estrago, basta dizer que, além da falência de editoras especializadas (como a EC Comics, líder no ramo "terror"), personagens clássicos tiveram de ser retrabalhados. Alguns autores desistiram da carreira. Outros, como Carl Barks, conseguiram passar mensagens levemente subversivas, de ataque às autoridades (principalmente na figura das absurdas matronas americanas) em suas historietas cômicas.Era um cenário aterrador. E totalmente propício para a aparição dos quadrinhos alternativos (ou underground). A juventude rebelde, acalorada pelo rock, excitada pela literatura bop da geração beat, estava ansiosa para se expressar e construir um mundo que em nada lembrasse o de seus pais. As HQs pareciam o ideal. Era uma forma de expressão recente, ainda não contaminada pelos ácaros das bibliotecas oficiais.Além disso, sempre associados ao infantil, ao lúdico, e agora à degeneração, os comics eram o meio perfeito de divulgação da ideologia "sexo, drogas e rock'n'roll" que tomava os corações daqueles jovens.Tinha de acontecer. Estava escrito, com a tinta rala, o sangue escasso e as parcas horas vagas de Robert Crumb.Ele deu início a uma verdadeira revolução. Mandando às favas as grandes editoras, escreveu e desenhou sozinho os três primeiros números (0, 1 e 2) da Zap Comix (com x, pra diferenciar dos comics bem comportados oficiais), e foi vender com sua esposa grávida numa esquina de São Francisco. Ainda hoje, seu exemplo é seguido por milhares de iniciantes que fazem quadrinhos artesanais (os famosos fanzines).A revista já nasceu subversiva. Nos números iniciais, Crumb fazia a apologia à maconha ("Ajude a construir uma América melhor... Fique chapado!", por exemplo) em sátiras às propagandas comuns nas revistas de antigamente (que vendiam de tudo, até óculos de raios-X). Rompendo com quase todas as regras impostas pelo Comics Code nos números seguintes, quando diversos artistas se juntaram ao autor, a Zap conseguiu o grande feito de ser proibida pelos órgãos oficiais de censura, no número 4, o que fez dela um sucesso estrondoso.Ao mesclar violência, sexo, indecências, delírios provocados pelo consumo excessivo de LSD, cabala, sátira aos heróis certinhos, homenagens aos mestres da Nona Arte, entre outras viagens, Zap Comix não só alimentou a saudável loucura de toda uma geração, como também contribuiu muito para o enriquecimento da linguagem da arte seqüencial, além de favorecer todo um movimento underground que viria a posteriormente retomar a seriedade dos quadrinhos americanos mainstream nos anos 80 (para vê-la novamente afundada na década seguinte). Entre os autores da revista estavam:

l S. Clay Wilson, principalmente com seu Capitão Sporra e os Piratas Pervertidos, em infinitas e desproporcionais orgias homossexuais explícitas, com diálogos como "Morda meu pau, marujo", "Me come", "Eu adoro gozar na boca do George" e por aí vai; o que nos remete ao famoso Uivo de Ginsberg (e poemas subseqüentes, além, é claro, de Walt Witman com seu O Captain My Captain). O ponto alto é quando o navio dos piratas pervertidos é atacado pelo navio das bucaneiras lésbicas.

l Rick Griffin, um surfista que vivia chapado, e de tanto se drogar se viciou em Cristo. Sua conversão foi motivo de chacota pra turma toda, mesmo depois de sua morte. Suas obras são completamente "psicodélico-místicas" - visões cósmicas à base de muito alucinógeno. Maior criação: Omo Bob. Punha continuamente o Mickey e o Donald em suas histórias, desenhando-os de modo original.

l Moscoso e seus delírios formais em que coisas se transformam em outras, como num sonho confuso. Há também cenas de sexo entre personagens "ingênuos" de desenhos dos anos 30. Sua homenagem a Krazy Kat (segundo muitos críticos, a melhor coisa já feita em quadrinhos), nas páginas 178 e 179, é muito bacana. Mas o melhor é a deliciosa loucura que começa na 127 e envolve Donald e seus sobrinhos, Little Nemo in Slumberland, Pernalonga, o Papa, um dinossauro esquisito, uma figura angelical, janelas etc.

l Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers, um dos expoentes do underground, faz diversas participações. Seu "Javali-Maravilha", tirando onda com os heróis certinhos (principalmente o Superman) é o ponto alto. Ele chega a estuprar e estraçalhar sua Lois Lane com seu avantajado... focinho! Mas há diversas belezas do autor na Zap, como a curta Não me entregue, bem no espírito macarthista.

l Robert Williams com seu Coochy Cooty (uma espécie de formiga que lembra muito o personagem evangélico Smilingüido) e sua alucinada visão da justiça em Inocência Desperdiçada. Criou páginas surreais que rivalizam com Salvador Dali.

l Spain Rodriguez, com suas histórias de motoqueiros e seu Trashman (personagem meio justiceiro, meio anarquista) também participa. Seu estilo lembra vagamente uma mistura de Shimamoto com Flavio Colin.

l Por fim, Robert Crumb, líder da turma, dando o exemplo com seu Mr. Natural (símbolo da era hippie), além de Tânia Tesuda, Almôndega e Angelfood McSpade. Ele é bastante conservador em relação à forma, sempre ficando com os velhos quadros fixos. No entanto, quanto ao conteúdo, é arrebatador. É o criador de Fritz the Cat, um gato cínico que volta à casa dos pais para transar com a irmã. A Zap era vendida em lojas alternativas para hippies, beatnicks e junkies em geral. Continuou sendo publicada esporadicamente até 1996, quando Crumb decidiu encerrar.Diversas obras do autor estão sendo publicadas no Brasil pela Conrad, que, aliás, fez um trabalho formidável neste álbum, que inclui ainda um longo texto introdutório de Rogério de Campos. Uma das mais recentes é América, uma crítica ao pensamento americano.Nascidas em plena era da reprodutibilidade técnica, sem possuir, portanto, a sacra "aura" das obras de arte, as histórias em quadrinhos puderam, enfim, seguir um caminho mais livre que suas irmãs conceituadas. A Zap é prova disso. Ela, junto com os textos de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, mostrou o caminho para toda uma geração, ansiosa por mudanças (que talvez não tenham vindo, ou sido o esperado). A recente onda conservadora norte-americana tem ressuscitado o interesse por essa época. Seria uma nova revolução por vir? Só podemos esperar.Até lá, é ler a Zap Comix não uma, mas centenas de vezes, e se preparar para a "batalha".

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