quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Surrealismo - Apogeu da Arte




O termo, cunhado por André Breton (1896-1966) a partir da idéia de 'estado de fantasia supernaturalista' de Guillaume Apollinaire (1880-1918), traz consigo um sentido de afastamento da realidade ordinária que o movimento surrealista celebra desde o primeiro manifesto, de 1924. Nos termos de Breton, autor do manifesto, trata-se de 'resolver a contradição até agora vigente entre sonho e realidade pela criação de uma realidade absoluta, uma supra-realidade'. A importância do mundo onírico, do irracional e do inconsciente, anunciada já no texto inaugural, se relaciona diretamente ao uso livre que os artistas fazem da obra de Sigmund Freud (1856-1939) e da psicanálise, permitindo-lhes explorar nas artes o imaginário e os impulsos ocultos da mente. O caráter anti-racionalista do surrealismo coloca-o nas antípodas das tendências construtivas e formalistas na arte que florescem na Europa após a 1ª Guerra Mundial, assim como das tendências ligadas ao chamado retorno à ordem. Como vertente crítica de origem francesa, o surrealismo aparece como alternativa ao cubismo, alimentado pela retomada das matrizes românticas francesa e alemã, do simbolismo, da pintura metafísica italiana - Giorgio de Chirico (1888-1978), sobretudo - e do caráter irreverente e dessacralizador do dadaísmo, de onde vieram parte dos surrealistas. Como o movimento dada, o surrealismo apresenta-se como crítica cultural mais ampla, que interpela não somente as artes mas modelos culturais, passados e presentes. Na contestação radical de valores que empreende, faz uso de variados canais de expressão - revistas, manifestos, exposições etc. - mobilizando diferentes modalidades artísticas: escultura, literatura, pintura, fotografia, artes gráficas e cinema.




A crítica à racionalidade burguesa em favor do 'maravilhoso', do fantástico e dos sonhos, reúne artistas de feições muito variadas sob o mesmo rótulo. Na literatura, além de Breton, Louis Aragon (1897-1982), Philippe Soupault (1897-1990), Georges Bataille (1987-1962), Michel Leiris (1901-1990), Max Jacob (1876-1944) etc. Nas artes plásticas, René Magritte (1898-1967), André Masson (1896-1987), Joán Miro (1893-1983), Max Ernst (1891-1976), Salvador Dali (1904-1989), entre outros. Na fotografia, Man Ray (1890-1976), Dora Maar (1907-1997), Brasaï (1899-1984). No cinema, Luis Buñuel (1900-1983). Certos temas e imagens foram obsessivamente tratados por eles, ainda que a partir de soluções distintas, como por exemplo, o sexo e o erotismo; o corpo, suas mutilações e metamorfoses; o manequim e a boneca; a violência, a dor e a loucura; as civilizações primitivas e o mundo da máquina. Esse amplo repertório de temas e imagens encontra-se traduzido nas obras por meio de procedimentos e métodos pensados como capazes de driblar os controles conscientes do artista e, portanto, responsáveis pela liberação de imagens e impulsos primitivos. A escrita e a pintura automáticas, fartamente utilizados, seriam formas de transcrição automática do inconsciente, pela expressão do 'funcionamento real do pensamento' (por exemplo, os desenhos produzidos coletivamente entre 1926 e 1927 por Man Ray, Yves Tanguy (1900-1955), Miró e Max Morise (1903-1973), sob o título O cadáver requintado). A frottage [fricção] desenvolvida por M. Ernst faz parte das técnicas automáticas de produção. Trata-se de esfregar lápis ou crayon sobre uma superfície áspera ou texturizada para 'provocar' imagens, resultados aleatórios do processo (por exemplo, a série de desenhos História natural, realizada entre 1924 e 1927).



As colagens e assemblages constituem mais uma expressão caraterística da lógica de produção surrealista, ancorada na idéia de acaso e de escolha aleatória, princípio central de criação já para os dadaístas. A célebre frase de Lautrémont é tomada como inspiração forte: 'belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção'. A sugestão do escritor se faz notar na justaposição de objetos desconexos e nas associações à primeira vista impossíveis que particularizam as colagens e objetos surrealistas. Que dizer de um ferro de passar cheio de pregos, de uma xícara de chá coberta de peles ou de uma bola suspensa por corda de violino? Dalí radicaliza a idéia de libertação dos instintos e impulsos contra qualquer controle racional pela defesa do método da 'paranóia crítica', forma de tornar o delírio um mecanismo produtivo, criador. A crítica cultural empreendida pelos surrealistas, baseada nas articulações arte/inconsciente e arte/política, deixa entrever sua ambição revolucionária e subversiva, amparada na psicanálise - contra a repressão dos instintos - e na idéia de revolução oriunda do marxismo (contra a dominação burguesa). As relações controversas do grupo com a política aparecem na adesão de alguns ao trotskismo (Breton, por exemplo) e nas posições reacionárias de outros, como Dalí.


A difusão do surrealismo pela Europa e Estados Unidos faz-se rapidamente. É possível rastreá-la em esculturas de artistas díspares como Alberto Giacometti (1901-1966), Alexander Calder (1898-1976), Hans Arp (1886-1966) e Henry Spencer Moore (1898-1986). Na Bélgica, Romênia e Alemanha ecos surrealistas vibram em obras de Paul Delvaux (1897-1994), Victor Brauner (1903-1966) e Hans Bellmer (1902-1975), respectivamente. Em solo americano, o chileno Roberto Matta (1911) e o cubano Wifredo Lam (1902-1982) devem ser lembrados como afinados com o movimento. Nos Estados Unidos, o surrealismo é fonte de inspiração para o expressionismo abstrato e para a arte pop. No Brasil especificamente o surrealismo reverbera em obras variadas como as de Ismael Nery (1900-1934) e Cicero Dias (1907-2003), assim como nas fotomontagens de Jorge de Lima (1893-1953). Nos nossos dias vários artistas continuam a tirar proveito das lições surrealistas.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

A História Hippie

A História Hippie

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Em todas as épocas, sempre ouviu-se falar de rebeldia, de delinqüentes, de desajustados. Nos anos 60 não poderia ser diferente. Porém, de braços dados a essa rebeldia, havia um potencial criativo, um poder, um idealismo marcante e abrangente, uma força como nunca na história da humanidade os jovens haviam experimentado. Essa década "mágica" foi embalada pelo psicodelismo do rock, das drogas e, ao mesmo tempo, talvez em contradição, pelo culto aos velhos valores.
Os beatniks
Pelos anos 50, em pleno pós-guerra, havia um certo sentimento de insatisfação entre os jovens. Nem todos estavam dispostos a assumir os papéis costumeiros na sociedade. Mais especificamente nos Estados Unidos, uma parte dos jovens não tinha interesse em dar continuidade ao estilo de vida medíocre e superficial de seus pais, na qual, a aquisição de coisas desnecessárias era a razão da existência. Eles estavam em busca de uma verdadeira liberdade, de emoções diferentes, sensações novas.
Como conseqüência dessa insatisfação e por não acreditarem que as coisas fossem melhorar, ele mandavam tudo para o diabo, ficavam "pirados" com álcool ou drogas e botavam o pé na estrada em busca de aventura, viajando de carona através do país, inclusive pela Rota 66. Eles fariam parte da chamada geração "beat", mais tarde batizados de "beatniks".



Por possuir uma linguagem muito própria, o movimento beat gerou um estilo de literatura bem particular, caracterizado por uma maneira bem solta de escrever, esquecendo regras, usando gírias e criando termos.
Entre os escritores que se destacaram nesse período, estão Allen Ginsberg, autor de "Howl", poema escrito com doses de erotismo e obscenidade que fizeram de Allen um símbolo mundial de depravação sexual; e Jack Kerouac, consagrado como o grande ícone da geração beat e celebrizado por seu livro "Pé na Estrada", considerado a bíblia dos beatniks, onde ele conta as suas aventuras e de seus amigos cruzando a América de costa a costa. Apesar de ter as suas raízes em Nova Iorque, o movimento espalhou-se, chegando a criar um reduto próprio na cidade de San Francisco, no bairro de North Beach.



San Francisco
Em San Francisco, já nos primeiros anos da década de 60, a cena começava a se modificar. Como resultado de uma educação liberal, que estimulava a capacidade de expressão, os jovens passaram a ser mais críticos e contestadores, exigindo soluções para os problemas que os rodeavam. Eles acreditavam conseguir modificar a sociedade moderna, criando o paraíso dos sonhos, baseado apenas no amor, na arte, no êxtase. Queriam acabar com a pobreza e o racismo, denunciar a poluição atmosférica, se libertar da inveja e da cobiça. Essa foi a semente do movimento hippie. Os hippies eram uma espécie de "versão em cores" dos beatniks, pois também estavam insatisfeitos com a sociedade, porém acreditavam em seus "sonhos dourados"
Por essa mesma época, existia em San Francisco uma comunidade urbana chamada The Family Dog, que foi responsável por um grande acontecimento: a organização do primeiro baile de rock da cidade, realizado em 16 de outubro de 1965, no Longshoreman's Hall, com quatro bandas locais. Pouco depois desse grandioso evento, San Francisco já estava mudada. O bairro quente deixou de ser o boêmio North Beach, reduto dos beatniks, e passou a ser a área em volta da esquina das ruas Haight com Ashbury, um velho gueto negro que os jovens redecoraram com cores psicodélicas, incenso, roupas e jóias orientais, criando uma comunidade.
O pessoal do Grateful Dead morava no nº 710 da rua Ashbury

No apogeu da comunidade de Haight-Ashbury, a principal droga consumida era o poderoso ácido lisérgico, conhecido como LSD que, apesar de já haver na época registros de inúmeros casos de morte por overdose, o seu uso vinha sendo defendido publicamente por Timothy Leary, entre outros artistas e personalidades.
Flower Child



San Francisco tinha agora o seu som próprio. Eram os blues, que falavam da dor e davam voz às suas frustrações. Os blues amplificados, elétricos, gritantes, sem polimento, coloridos pelo LSD, acompanhados de luzes e visuais psicodélicos. Ao lado disso, inúmeras filosofias e crenças eram "desenterradas". Velhos ideais de vida comunitária e amor livre coexistiam pacificamente com crenças ancestrais (astrologia, tarô, magia) e com as mais exóticas religiões orientais (budismo, taoísmo), além da revalorização do cristianismo original, expressa nas figuras de São Francisco de Assis e Cristo (começavam a surgir os "Jesus Freaks": jovens que seguiam os ideais de Jesus, aliados à filosofia hippie), lado a lado com rituais primitivos dos índios americanos e dos africanos. Os Hare Krishna também ganhavam força. Havia uma nova indagação para a espiritualidade...

Psicodelismo
Em 1966, com o fim da The Family Dog, os bailes de San Francisco passaram a ser organizados por Bill Graham, dono do Filmore Auditorium, que seria o templo do rock dos anos 60; e por Chet Helms, dono do Salão Avalon e que mandou buscar do Texas a sua velha amiga, até então desconhecida Janis Joplin, para a ser a cantora do conjunto da casa, o Big Brother and the Holding Company. Em pouco tempo, os grupos de rock de San Francisco (que eram pouco mais de meia dúzia) passaram a se multiplicar, chegando, no final de 1966, a aproximadamente 1.500, todos sob a influência do blues.



Em janeiro de 1967 (que ficou conhecido como o ano da flor), os hippies da cidade mostraram a sua força ao convocarem uma "Reunião de Tribos" no Golden Gate Park para o chamado World's First Human Be-In, que teve a presença de cerca de 20 mil jovens cantando e dançando, cobertos de flores, de colares e pulseiras de contas. Compareceram também Timothy Leary, o papa do LSD, o poeta beat Allen Ginsberg, além de outros novos gurus. A partir daí, profetizou-se que 100 mil hippies ou flower children ("filhos da flor", como se intitulavam) invadiriam a cidade de San Francisco em junho, para o chamado Verão do Amor. Uma grande publicidade para o Verão do Amor foi a música "San Francisco", gravada pelo cantor Scott McKenzie. A música, composta por John Phillips (dos Mamas and Papas), recomendava a quem fosse a San Francisco que não esquecesse de colocar flores nos cabelos. A música se tornaria o hino daquele ano...

Na verdade, os cem mil jovens esperados não chegaram a San Francisco de uma só vez, mas estiveram lá no decorrer daquele verão. Eles exigiam das autoridades casa, comida e assistência médica. Além disso, a Comissão de Parques liberou algumas áreas em torno de Haight-Ashbury para sacos-de-dormir. Da noite para o dia, a cidade ganhou fama (nacional e internacional) de capital mundial dos hippies, o que acabou atraindo turistas de vários lugares.
Diante da exploração turística, muitos hippies deixaram Haight-Ashbury e foram viver em comunidades rurais. O que aconteceu naquele verão em San Francisco foi um reflexo do que estava acontecendo, ou iria acontecer, em quase todas as cidades do mundo industrializado.
Uma "estranha" comunidade no Novo México...

Por essa mesma época, próximo de San Francisco, acontecia o Monterey Pop Festival (16 a 18 de junho de 1967), o primeiro grande festival de rock. Graças à cobertura dada ao festival, os hippies e seus melhores grupos de rock ganharam fama internacional. Embora fossem esperadas 7.100 pessoas, Monterey acabou acolhendo mais de 50 mil, a maioria sem ingresso, mas fiéis ao slogan do festival: "Música, amor e flores". Mais importante do que tudo isso, é que através de Monterey, o mundo assistiu ao nascimento instantâneo de duas estrelas do rock: Janis Joplin e Jimi Hendrix.

Mais dois acontecimentos ainda marcariam aquele período. O primeiro foi o lançamento do disco Sergeant Pepper's, considerado o "divisor de águas" da obra dos Beatles. A partir desse álbum, eles abandonavam de vez a imagem de adolescentes e firmavam-se como músicos criativos (parte de sua criatividade era atribuída ao uso do LSD).
O segundo acontecimento, também envolvendo os Beatles, foi um especial de televisão transmitido para 200 milhões de pessoas em vários países pelo novo sistema via satélite, onde eles cantaram "All You Need is Love", cuja letra dizia que tudo era possível, desde que existisse amor.
Apesar de caracterizada principalmente pela busca do prazer, a utopia hippie não deixava lugar para injustiças sociais e opressão. Em novembro de 1967, muitos participaram da Marcha ao Pentágono, que foi um dos maiores confrontos entre estudantes e a força militar. O fato anunciava que o ano de 1968 seria essencialmente político. E foi...

A insatisfação que existia entre os negros aumentou ainda mais após o assassinato do Reverendo Martin Luther King, em abril, dando força ao Black Power e aos Panteras Negras, que defendiam a luta armada. Crescia a resistência ao serviço militar e à guerra do Vietnã. No mundo inteiro eram feitas manifestações nas universidades e nas ruas. Protestos durante a convenção do Partido Democrata em Chicago, se transformaram numa batalha entre jovens e policiais.
No verão de 1969, tentando transformar seus sonhos em realidade e pôr a sua utopia em prática, estudantes e voluntários ocuparam um terreno abandonado da Universidade de Berkeley e o transformaram num parque público, com jardins, playgrounds para as crianças, fontes d'água e concertos de rock. Era o People's Park, o Parque do Povo. Vendo isso como uma ameaça ao Sistema, que já se sentia vulnerável, o governador Reagan da Califórnia (anos mais tarde presidente dos Estados Unidos) convocou a polícia e a Guarda Nacional para "resolver" a situação.

Com paus e pedras ou até de mãos limpas, os jovens afrontaram as forças da repressão... O People's Park foi arrasado e transformado em estacionamento de veículos... Um estudante foi morto... Sobraram apenas alguns panfletos que os jovens distribuíam, onde eles apresentavam suas propostas... ou sonhos?
Mas o ano de 1969 seria marcado pelo Festival de Woodstock, o maior de todos os festivais de rock, realizado no fim de semana de 15 a 17 de agosto, um mês depois do homem ter pisado na lua. O evento se chamava Woodstock Music & Art Fair, subtitulado "Primeira Exposição Aquariana". Seu slogan "três dias de paz e música" logo foi modificado para "três dias de paz e amor". O valor do ingresso para o fim de semana era 18 dólares, mas a maior parte do público invadiu o local derrubando as cercas (como pode ser visto no filme "Woodstock" de Michael Wadleigh).
Dia e noite, sob sol ou chuva, a música rolou quase sem parar para meio milhão de jovens, (veja os números de Woodstock) com um cast de artistas que formavam um verdadeiro quem é quem.

Quem é Quem do rock.

Na manhã de segunda feira, dia 18 de agosto, sob um imenso sol alaranjado, Jimi Hendrix sobe ao palco, brindando aqueles que ainda não tinham ido embora do local, com sua interpretação do hino nacional dos EUA, "The Star Spangled Banner", arrancando de sua guitarra explosões de bombas, granadas, rajadas de metralhadoras e roncos de helicópteros, numa clara alusão à guerra do Vietnã.
Woodstock foi como uma cerimônia de sagração da contracultura. Aqueles que tiveram o privilégio de viver o festival de perto, saíram sentindo-se ungidos de santidade. Ainda haveriam outros festivais (como o de Altamont, com 300 mil pessoas), mas nenhum com a força de um Woodstock.



Woodstock parecia uma antevisão da utópica sociedade hippie. A engrenagem social era bem mais complexa do que podia-se imaginar, mas, no final de tudo, apesar do sistema tentar "devorá-los", o mundo nunca mais seria o mesmo. À medida em que ia absorvendo todas as novas idéias, o próprio sistema também se modificava. A geração que acreditou ser capaz de parar uma guerra e mudar o mundo, deixou uma semente que acabaria sendo lançada aos quatro ventos, indo refletir-se nos lugares mais longínquos do globo. Uma nova moral, uma nova ética, novos valores haviam sido cultivados na cabeça das pessoas, graças àqueles jovens dos anos 60. Essa semente está presente ainda hoje dentro de cada um que se permita sonhar e acreditar na realização de seu sonho. Aliás, o sonho não acabou...





sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008



Título: ZAP COMIX (Conrad Editora) - Edição especial

Autores: Robert Crumb, S. Clay Wilson, Rick Griffin, Robert Williams, Manuel Spain Rodriguez, Victor Moscoso, Gilbert Shelton e Paul Mavrides (roteiro e arte).

Número de páginas: 192

Data de lançamento: Outubro de 2003


Sinopse:

Compilação que reúne diversos momentos da revista underground americana Zap Comix, importante marco da contracultura (anos 60 e 70).Positivo/Negativo: Feche esta janela aquele cujos pais nunca se importaram que passassem os dias a ler "inúteis gibis". Afortunados os admiradores dessa arte incompreendida que não penaram com esse tipo de repressão, nem tiveram seus álbuns raros rasgados por mães hepáticas.Desde que o mundo é mundo e o pequeno Nemo passeava pelos campos oníricos bidimensionais dos jornais de domingo, pais e comics não se dão bem. Nos Estados Unidos da década de 1950, então, essa desavença foi parar no divã.A "América", como se fora um mundo à parte (e de certa forma o é), passa por ciclos contínuos previsíveis, um se seguindo ao outro, de liberalismo e conservadorismo (devidamente representados em seus dois principais partidos: respectivamente, o democrata e o republicano).Nos anos 50, os conservadores dominavam. A base da sociedade estadunidense (a liberdade de expressão) e todo seu viés democrático (a expansão de uma nova cultura popular, sob a crosta da Indústria Cultural) haviam levado o país a um esplendor jamais visto. Assim, o início do século XX acompanhou a efervescência do jazz, Hollywood, Brodway, Norman Rockwell, a literatura descartável em edições vagabundas (pulp fiction) e os comic books (que são, enfim, o que nos interessa).

Com a surpreendente liberdade que caracteriza os novos meios, os quadrinhos, em seus primórdios, assimilaram rapidamente características da cultura de massa vigente, mesclando literatura (não só a pulp fiction, como os clássicos) a cinema, ciência e até os estudos psicanalíticos da época, fornecendo inúmeras inovações formais que seriam adotadas pelas outras artes (cinema principalmente).Embora fossem consideradas pelos críticos como "infantis" ou "emburrecedoras", as primeiras obras atingiam em sua maior parte o público adulto e razoavelmente esclarecido (afinal, eram publicadas em jornais). Datam dessa época áurea, obras insuperáveis, como Krazy Kat e Little Nemo in Slumberland.Consta que os soldados americanos consumiam dúzias de HQs nos frontes da Segunda Guerra. Era de tal forma patente essa forte identificação do "jeito americano de viver" com os comics, que um alto funcionário do governo soviético, a respeito do medo ianque de uma invasão comunista durante a Guerra Fria, disse: "eles podem ficar tranqüilos, não vamos tirar seus quadrinhos".Em nenhum outro país, portanto, podia ter se dado o fenômeno Zap Comix, nos idos de 1968. A liberdade total das primeiras décadas durara pouco. A América engrossou o caldo. O macarthismo invadia as ruas, criando uma paranóia perigosamente semelhante à atual. Os quadrinhos não podiam ficar de fora.Satisfazendo o desejo de nove em cada dez mães estadunidenses, os gibis foram formalmente acusados de levar a juventude à degeneração pelo "Senador Joseph McCarthy dos comics", o Dr. Fredric Wertham, em seu livro The Seduction of the Innocents (A Sedução dos Inocentes).De acordo com o autor, leitores de quadrinhos tinham maior propensão a se tornarem criminosos ou terem comportamentos socialmente inconvenientes (Wertham atribuía, por exemplo, o aumento considerável da "pederastia" nas forças armadas à leitura de Batman & Robin).

Houve uma crise imediata no setor. Os jornaleiros se recusavam a vender HQs (o lucro era ínfimo, se comparado à perseguição das associações de pais).A reação da até então bem-sucedida indústria dos comics (para evitar uma séria restrição por parte do Congresso Americano) foi a autocensura. Assim, foi criada logo em seguida o famoso Comics Code Authority, que reunia as grandes editoras da época e instituía nos gibis uma visão puritana.Adotando o pensamento de Wertham como verdade incontestável, não só acabou com o gênero horror (para a alegria dos quadrinhistas brasileiros, que o transformaram no grande filão do mercado brasileiro, fazendo ótimas HQs, nas décadas de 1960 e 70), como também pôs fim a quaisquer expressões de erotismo (daí os heróis em certo período serem "capados"), decretou a visão maniqueísta como padrão no tratamento das histórias... Enfim, arruinou o que vinha sendo feito. Nada era comercializado nas bancas sem esse selo, que era uma garantia para os pais de que seus filhos consumiam produtos inofensivos.Pra se ter uma idéia do estrago, basta dizer que, além da falência de editoras especializadas (como a EC Comics, líder no ramo "terror"), personagens clássicos tiveram de ser retrabalhados. Alguns autores desistiram da carreira. Outros, como Carl Barks, conseguiram passar mensagens levemente subversivas, de ataque às autoridades (principalmente na figura das absurdas matronas americanas) em suas historietas cômicas.Era um cenário aterrador. E totalmente propício para a aparição dos quadrinhos alternativos (ou underground). A juventude rebelde, acalorada pelo rock, excitada pela literatura bop da geração beat, estava ansiosa para se expressar e construir um mundo que em nada lembrasse o de seus pais. As HQs pareciam o ideal. Era uma forma de expressão recente, ainda não contaminada pelos ácaros das bibliotecas oficiais.Além disso, sempre associados ao infantil, ao lúdico, e agora à degeneração, os comics eram o meio perfeito de divulgação da ideologia "sexo, drogas e rock'n'roll" que tomava os corações daqueles jovens.Tinha de acontecer. Estava escrito, com a tinta rala, o sangue escasso e as parcas horas vagas de Robert Crumb.Ele deu início a uma verdadeira revolução. Mandando às favas as grandes editoras, escreveu e desenhou sozinho os três primeiros números (0, 1 e 2) da Zap Comix (com x, pra diferenciar dos comics bem comportados oficiais), e foi vender com sua esposa grávida numa esquina de São Francisco. Ainda hoje, seu exemplo é seguido por milhares de iniciantes que fazem quadrinhos artesanais (os famosos fanzines).A revista já nasceu subversiva. Nos números iniciais, Crumb fazia a apologia à maconha ("Ajude a construir uma América melhor... Fique chapado!", por exemplo) em sátiras às propagandas comuns nas revistas de antigamente (que vendiam de tudo, até óculos de raios-X). Rompendo com quase todas as regras impostas pelo Comics Code nos números seguintes, quando diversos artistas se juntaram ao autor, a Zap conseguiu o grande feito de ser proibida pelos órgãos oficiais de censura, no número 4, o que fez dela um sucesso estrondoso.Ao mesclar violência, sexo, indecências, delírios provocados pelo consumo excessivo de LSD, cabala, sátira aos heróis certinhos, homenagens aos mestres da Nona Arte, entre outras viagens, Zap Comix não só alimentou a saudável loucura de toda uma geração, como também contribuiu muito para o enriquecimento da linguagem da arte seqüencial, além de favorecer todo um movimento underground que viria a posteriormente retomar a seriedade dos quadrinhos americanos mainstream nos anos 80 (para vê-la novamente afundada na década seguinte). Entre os autores da revista estavam:

l S. Clay Wilson, principalmente com seu Capitão Sporra e os Piratas Pervertidos, em infinitas e desproporcionais orgias homossexuais explícitas, com diálogos como "Morda meu pau, marujo", "Me come", "Eu adoro gozar na boca do George" e por aí vai; o que nos remete ao famoso Uivo de Ginsberg (e poemas subseqüentes, além, é claro, de Walt Witman com seu O Captain My Captain). O ponto alto é quando o navio dos piratas pervertidos é atacado pelo navio das bucaneiras lésbicas.

l Rick Griffin, um surfista que vivia chapado, e de tanto se drogar se viciou em Cristo. Sua conversão foi motivo de chacota pra turma toda, mesmo depois de sua morte. Suas obras são completamente "psicodélico-místicas" - visões cósmicas à base de muito alucinógeno. Maior criação: Omo Bob. Punha continuamente o Mickey e o Donald em suas histórias, desenhando-os de modo original.

l Moscoso e seus delírios formais em que coisas se transformam em outras, como num sonho confuso. Há também cenas de sexo entre personagens "ingênuos" de desenhos dos anos 30. Sua homenagem a Krazy Kat (segundo muitos críticos, a melhor coisa já feita em quadrinhos), nas páginas 178 e 179, é muito bacana. Mas o melhor é a deliciosa loucura que começa na 127 e envolve Donald e seus sobrinhos, Little Nemo in Slumberland, Pernalonga, o Papa, um dinossauro esquisito, uma figura angelical, janelas etc.

l Gilbert Shelton, criador dos Freak Brothers, um dos expoentes do underground, faz diversas participações. Seu "Javali-Maravilha", tirando onda com os heróis certinhos (principalmente o Superman) é o ponto alto. Ele chega a estuprar e estraçalhar sua Lois Lane com seu avantajado... focinho! Mas há diversas belezas do autor na Zap, como a curta Não me entregue, bem no espírito macarthista.

l Robert Williams com seu Coochy Cooty (uma espécie de formiga que lembra muito o personagem evangélico Smilingüido) e sua alucinada visão da justiça em Inocência Desperdiçada. Criou páginas surreais que rivalizam com Salvador Dali.

l Spain Rodriguez, com suas histórias de motoqueiros e seu Trashman (personagem meio justiceiro, meio anarquista) também participa. Seu estilo lembra vagamente uma mistura de Shimamoto com Flavio Colin.

l Por fim, Robert Crumb, líder da turma, dando o exemplo com seu Mr. Natural (símbolo da era hippie), além de Tânia Tesuda, Almôndega e Angelfood McSpade. Ele é bastante conservador em relação à forma, sempre ficando com os velhos quadros fixos. No entanto, quanto ao conteúdo, é arrebatador. É o criador de Fritz the Cat, um gato cínico que volta à casa dos pais para transar com a irmã. A Zap era vendida em lojas alternativas para hippies, beatnicks e junkies em geral. Continuou sendo publicada esporadicamente até 1996, quando Crumb decidiu encerrar.Diversas obras do autor estão sendo publicadas no Brasil pela Conrad, que, aliás, fez um trabalho formidável neste álbum, que inclui ainda um longo texto introdutório de Rogério de Campos. Uma das mais recentes é América, uma crítica ao pensamento americano.Nascidas em plena era da reprodutibilidade técnica, sem possuir, portanto, a sacra "aura" das obras de arte, as histórias em quadrinhos puderam, enfim, seguir um caminho mais livre que suas irmãs conceituadas. A Zap é prova disso. Ela, junto com os textos de Allen Ginsberg e Jack Kerouac, mostrou o caminho para toda uma geração, ansiosa por mudanças (que talvez não tenham vindo, ou sido o esperado). A recente onda conservadora norte-americana tem ressuscitado o interesse por essa época. Seria uma nova revolução por vir? Só podemos esperar.Até lá, é ler a Zap Comix não uma, mas centenas de vezes, e se preparar para a "batalha".